Peixe
O peixinho prateado
No aquário, sempre o vejo
Bem me fita, o assanhado
Só querendo me dar beijos.
Sua boca um "oi" miúdo
Vai dizendo e isso é bom
Só o peixe nesse mundo
Fala "oi" sem soltar som.
Maria Mortalha
Cedo, deitou-se Maria, pronta pra logo morrer,
vestindo a alva mortalha, sem medo de adormecer.
Os olhos tanto mais fundos, coroados por olheiras,
cerravam-se moribundos, nessa hora derradeira.
Implorando-lhe ajuda, veio um moleque qualquer:
- Vó, apanha uma agulha, me tira o bicho do pé!
Servil, levanta a Maria, desvestindo a alva mortalha
e já mais morta que viva, do pé, o bicho estraçalha.
Volta, esvaída, Maria para o bom leito de morte,
quando lhe chega a nora , chorando a fome e a sorte.
Maria, do quarto, dormente, sai e aquece o fogão,
serve-lhe o leite fervente e duros nacos de pão.
Com a fome, então, saciada e o corpo fortalecido,
parte a jovem senhora com olhos agradecidos.
Maria, assim, novamente, põe-se no leito de palha,
julgando que, certamente, não mais tiraria a mortalha.
E eis que lhe chega a vizinha com um pote tosco à mão.
Queria do sal, só um pouco, que lhe salgasse o feijão.
Maria deixa o leito... que a Morte espere um instante...
pra atender a boa vizinha, ergueu-se, mesmo ofegante.
Bem cheio o pote de sal, a dona vai-se embora.
Maria, já fria, descora e aguarda, da Morte, a hora.
A Morte que vinha chegando, notou-a em pele ardente,
porém, percebeu que a lida, tornara Maria valente.
Vendo a mulher à espera, recolhida em seu leito,
ordena que se levante e atenda-a com medo no peito.
Maria coloca, surpresa, os olhos esbugalhados
sobre as vestes que a Morte trazia em trapos rotos, rasgados.
A Morte impõe, soberana: - Sobreviva só mais um dia,
ainda que condenada, cosa-me a capa, Maria!
E apontando-lhe as entranhas, ressecadas e vazias,
exige-lhe que, ao fogo, torne, o leite, que frio jazia.
Maria salta do leito, arranca a tal da mortalha
e sem mesura ou respeito, rebelde, à Morte, detalha:
- Em face aos desmandos alheios,
viverei mais um ano e meio.
Língua líquida
A líquida língua vaza!
Infiltra-se entre os dentes,
rompe os limites dos lábios
gotejando boca á fora
ou, entornando livremente...
Não há fronteira que a reprima,
não há limite que a contenha.
O dono da língua líquida,
possui ouvidos alados
que saem pelas orelhas,
lúcidos ou atordoados,
diretos ou de qualquer maneira
e colhendo informações
voam pra todo lado!
Temo essa língua por ela,
pelos ouvidos que a acompanham
e por todos ouvidos alheios
nos quais chega, sem medo,
a relevar os segredos.
Se uma dessas, liquefeitas,
vem molhar-me os ouvidos,
afasto-a rapidamente,
secando depressa o líquido,
temendo que tal proximidade
impune contamine-me a língua,
e que por momentos, instantes
ou pelo restante da vida
liqüefaça-a abundante, infame
larga, solta e incontida...
Uma casca de noz
Uma casca de noz rolou pela rua.
"Crash"...
sob os sulcos de um pneu,
lá se foi o último fragmento
do Natal rodando pela cidade.
Uma lasca "de nós" rolou pela rua.
"Trach"...
sob os olhos de um ateu,
lá se foi o último segmento
formal da falsa religiosidade.
O Rio
Rola o Rio adormecido e mudo,
em cochicho miúdo, absurdo!
Desliza em cochilos alados,
num leito molhado e cansado...
Rola o Rio em embalo trôpego
com sibilos roucos e sôfregos...
Verte um choro machucado,
benevolente ou irado
E rola descendo a serra
em desgraça ou benefício,
ora, mata a sede da Terra,
ora, afoga-a em desperdícios.
Incauto, ignora o Rio:
se a Terra assim o quisesse,
dele faria um só fio,
antes que a cheia viesse...
Vegetação espontânea
Invejo a independência
da vegetação espontânea,
que escolhe nascer
onde melhor lhe aprouver.
Não é, milimetricamente, planejada,
nem, exaustivamente, controlada.
Vive por viver, sem cobranças,
como e quanto quiser.
Habita jardins naturais
sem canteiros convencionais,
tem o céu por regador
e o sol por cobertor... ou não.
Larga-se livre e solta,
sem estacas, sem escoras,
deita as folhas ao chão
ou alto vai, céu afora...
Cava o próprio alimento
sem mistura ou complemento,
floresce sem norma ou padrão
e se espalha, lindamente,
sem limite, sem patrão...
Chegando e partindo
Ante minha face hirta,
pálida, envelhecida
há um túmulo
uma cruz fosca
torta e velha,
uma jarra
trincada,
uma flor amarela; única
flor; amarela e bela;
bela e única; única e
frágil; frágil e muda,
muda e bela,
a flor amarela,
em jarra trincada,
sob cruz torta, velha,
sobre um tosco túmulo,
atrás de minha nuca suada...
Leite com café
Sou garoto curioso,
pra bem me instruir,
o que me é misterioso,
tento logo descobrir.
Sem certeza ou sem fé,
indago desde pequeno:
se a vaca bebesse café,
o leite seria moreno?